quinta-feira, 1 de outubro de 2009

ALIANÇA, OBEDIÊNCIA E FIDELIDADE

Jeremias 31:27-34

Contexto

Como com a maioria de outras leituras proféticas, de fato como acontece com a maior parte das leituras bíblicas, tanto o contexto literário como o histórico são importantes para se ouvir e entender a mensagem do texto. Esta lembrança pode até ser mais importante nesta leitura, como vimos em algumas outras leituras de Jeremias, por causa de determinados usos deste texto pelo Novo Testamento. É também importante por causa do modo como os cristãos tendem a ler o texto Cristologicamente. Lembrar-se de ter prudência ao abordar esta passagem não elimina nenhuma leitura cristã deste texto, nem sugere que qualquer leitura Cristológica esteja necessariamente errada. O texto pode falar-nos certamente como cristãos. Contudo, para ouvir este texto, ao contrário de suas interpretações posteriores pela lente de eventos históricos sucedidos mais tarde ou sob a luz de sistemas teológicos desenvolvidos mais adiante, temos de concentrar-nos no que esta leitura comunica no contexto do livro de Jeremias do Velho Testamento.
Há também um aspecto positivo nesta prudência. Entendendo este texto como a palavra de Deus em um determinado contexto histórico, e como conservado pela comunidade da fé em certo contexto literário, pode dar-nos de fato um pouco de discernimento mais profundo de como ouvir o Novo Testamento e o uso teológico cristão posterior do texto. E ele poderia até dar-nos alguns novos discernimentos de aspectos da teologia: como falamos e pensamos sobre Deus, que pode não ser tão óbvio quando esta leitura é domesticada num sistema teológico mais amplo.
Esta leitura está localizada na seção do Livro de Jeremias conhecido como O Pequeno Livro da Consolação (caps. 30-33). Isto é simplesmente um termo usado para observar que o assunto objeto destes capítulos deslocou-se decididamente do ministério de 40 anos de Jeremias de proclamar o juízo por meio das invasões babilônicas para o tema da futura restauração do povo além do exílio iminente (para obter mais informações sobre esta coleção do assunto, ver o Comentário sobre Jeremias 33:14-16; ver também em 31:27-34; 32:1-3a, 6-15).
O título desta seção também revela que alguns eruditos veem esta porção do livro de Jeremias como tendo-se originado num tempo posterior àquele do próprio profeta. Normalmente, os eruditos atribuem-no à comunidade pós-exílica, como eles começaram a entender a mensagem de Jeremias e elaboraram os temas de esperança e restauração, e logo organizaram teologicamente as tradições de Jeremias em volta da idéia de restauração e obediência à Torah. A pessoa ou o grupo que reuniu e editou este material são geralmente referidos como Deuteronomistas, refletindo a semelhança de perspectivas entre eles e a forma final do livro do Deuteronômio. Estas semelhanças são especialmente evidentes nesta leitura com a ênfase na Aliança (p. ex., Deu. 5:2-3), na linguagem do coração (p. ex., Deu. 4:29; cf. Jer. 29:13), e no assunto da fidelidade devida a Deus baseada em amor e compromisso que ultrapassa a restrição legal (p. ex., Deu. 6:4-9).
Contudo, como outras porções de Jeremias, especialmente dentro desta seção do livro, os eruditos estão divididos sobre quais partes vêm do próprio profeta e quais são interpretações posteriores da comunidade. Afortunadamente, como naquelas outras passagens, não temos que decidir estas questões para entender esta leitura dentro do contexto do livro de Jeremias. Mesmo se um pouco deste material, ou até tudo isto, vem da comunidade posterior como ele se refletiu no seu próprio futuro, é claro que ele continuou abrindo a mensagem de Jeremias para a comunidade da fé durante e além do Exílio. Isto sugere que a autoridade deste material não está em quem o escreveu, mas no que ele diz sobre Deus que a comunidade entendeu ser a palavra de Deus (ver Revelação e Inspiração da Escritura). É também porque podemos referir-nos a este material em termos de "Jeremias disse" sem implicar nada de uma forma ou de outra sobre a autoria, no nosso sentido moderno do termo.
Na interpretação ou leitura, isto também sugere que não importa qual a origem destes capítulos, eles não podem ser retirados do seu contexto dentro do livro de Jeremias sem fazer sério dano teológico a sua mensagem. É crucial que estes capítulos de esperança e promessa de um novo futuro permaneçam direta e intimamente ligados canonicamente à pregação precedente de Jeremias que proclamou juízo sobre o pecado e chamou o povo a voltar para Deus. Não podemos tomá-los daquele contexto, seja para cristianizá-los ou para resolver questões históricas da origem e fontes do texto ou simplesmente falar sobre esperança e renovação como um princípio abstrato, sem primeiro vê-los no contexto deles que é de fato o clímax do ministério de 40 anos de Jeremias. Fazer isso é arriscar-se a fazê-los dizer algo que a comunidade da fé que os preservou nunca disse. E nos arriscaríamos a lançar as promessas de Deus de um novo futuro para uma graça demasiado barata, que não leva a sério os fins para os quais esta comunidade de fé experimentou aquela graça. Como veremos, isto é um aspecto importante da mensagem teológica deste texto.
O contexto histórico desta leitura foi um tempo trágico na história de Israel. Desde a ascenção da Assíria em 745 a.C., os eventos mundiais tinham girado fora do controle de Israel. Houve algumas poucas vezes quando bons líderes israelitas e um vácuo na história mundial tinham permitido à monarquia de Judá conservar um pouco de controle do seu próprio destino (ver os reinos de Ezequias e Josias). Mas, na maior parte das vezes a pequenina nação tinha sido um mero penhor nas mãos dos impérios maiores. Ferozmente independente e nacionalista, ainda infeccionada por líderes débeis e vacilantes, Judá tinha jogado um jogo perigoso na tentativa de manter a sua própria existência lançando poderes rivais um contra o outro (veja o reino de Jeoaquim). Ainda como os profetas tinham estado avisando desde o tempo de Amós (745 a.C.), por tentarem agir sem considerar a fidelidade devida ao Deus que tinha trazido a nação à existência em primeiro lugar, isso não foi nada em vista da pecaminosa loucura que tomou conta da nação (p. ex., Jer. 2:17-19).
O fim de Judá estava próximo. Com todos os seus aliados reduzidos a vassalos ou enfraquecidos pela luta interna, Judá foi deixado praticamente sozinho para enfrentar o novo império mundial, Babilônia. E ainda, os líderes loucos ainda tinham tentado lutar contra o império, supondo que no último momento Deus os resgataria como ele tinha feito em relação aos assírios durante o reino de Ezequias. Mas Jeoaquim e Zedequias não eram como Ezequias. E a mensagem de Jeremias a Jeoaquim tinha sido diferente do que Isaías tinha dito a Ezequias. Jeremias tinha dito repetidamente ao povo e aos reis durante 40 anos que a menos que eles realmente se arrependessem e modificassem as suas atitudes em direção a Deus, desta vez eles não sobreviveriam. Ainda assim, eles se recusaram a atender a Deus. Os babilônios tinham vindo em 598 a.C. e viriam novamente em 586 a.C. para destruir totalmente o país e a cidade (ver a Ascenção de Babilônia e o Exílio, especialmente Zedequias e o Fim de Judá). Estes capítulos estão colocados entre estas duas invasões babilônicas. Historicamente, o tempo de Judá estava curto.
Foi nesta crise que Jeremias trouxe algumas das mais poderosas mensagens de esperança das Escrituras. Novamente, não devemos divorciar estas da sua ênfase no longo período da recusa israelita de atender a Deus, nem devemos ver algo disto à parte do juízo que Jeremias viu como um resultado inevitável do pecado do povo e da nação. Ainda há algo importante que devemos aprender sobre Deus aqui.

O Texto

O capítulo 31 abre-se como uma série de provérbios organizados em torno do tema da restauração prometida. O capítulo inteiro é dirigido pelo conceito da Aliança, introduzido com uma expressão teológica pesadamente carregada daquela idéia no verso 1: "serei o Deus de todas as famílias da terra, e vocês serão Meu Povo" (numa forma ligeiramente diferente em 30:22 e na forma mais típica em 31:33). Isto é conhecido como a fórmula da Aliança, um típico modo do Velho Testamento de expressar a relação entre Deus e Israel: como Deus tinha-se revelado a eles como Deus, como os chamou para reconhecê-lo como Deus e a responder em fidelidade a Ele como o Seu Povo (para saber mais sobre a fórmula da Aliança, veja o Comentário sobre Jeremias 31:7-14, especialmente a seção o Texto). No contexto do exílio, esta fórmula teria um enorme significado como uma estrutura não só para exprimir a graça de Deus, mas também para chamar o povo à responsabilidade e para atender ao apelo Divino diante daquela graça [imerecida].
A frase "naquele tempo" que introduz este capítulo (31:1), bem como as três ocorrências da frase "eis aí vêm dias" (vs. 27, 31, 38), levaram alguns a concluir que esta passagem é escatológica, referindo-se a algum tempo "do fim" no futuro indeterminado quando Deus restaurará Sua Criação. Contudo, esse é um significado demasiadamente amplo deste texto, e reflete desenvolvimentos muito posteriores do conceito de escatologia ou "últimas coisas". Enquanto alguns da comunidade pós-exílica e da comunidade cristã posterior tenderam a expressar a teologia aqui em tais termos, esta leitura está firmemente amarrada à história. Mesmo não sendo sobre as "últimas coisas" ou o fim da história, o texto é claramente orientado ao futuro, à expectativa da ação de Deus dentro da vida histórica da comunidade israelita. Isto pode não esgotar as possibilidades de aplicação desta leitura, mas elas seguramente devem iniciar aqui.
Embora tenhamos observado que o capítulo 31 está unido por temas e expressões em comum, esta leitura divide-se em duas seções claramente marcadas pela frase introdutória "eis aí vêm dias" (27-30, 31-34). A primeira seção usa uma série de três metáforas para descrever a virada do tempo de juízo para o tempo de esperança.
A imagem da dispersão foi provavelmente emprestada de Oséias que tinha usado a metáfora num jogo de palavras com o nome Jezreel ("Deus espalha") para falar sobre a futura restauração do Povo por Deus (Osé. 1:10-11, 2:21-23; cf. 14:4-7). Oséias tinha usado a metáfora em conjunto com a fórmula da Aliança para descrever a natureza do relacionamento restaurado entre Deus e Israel (Osé. 2). É provável que não tenha sido por acidente que Jeremias usou a metáfora, aqui, no mesmo contexto de Aliança. Também em Jeremias, a dispersão do povo está relacionada à metáfora da plantação, um dos seis temas que são tecidos em todas as partes do livro (junto com edificar e as palavras arrancar, derrubar, destruir e arruinar; veja o Comentário sobre Jeremias 1:4-10). Em uma terra tão árida, a metáfora de plantas crescendo sempre tem as conotações positivas da bênção e da estabilidade da vida representadas por um estável suprimento de comida. Aqui, a metáfora da dispersão serve para apontar para um futuro onde novamente haverá estabilidade na terra (ver o Comentário sobre Jeremias 32:1-3a, 6-15).
O segundo grupo de metáforas nesta seção retorna ao mesmo agrupa-mento de seis termos observados acima que servem como condutores do assunto através do livro. Estes temas foram usados para formar a narrativa de chamada de Jeremias (1:10), e isoladamente ou em pares foram usados em momentos-chave oportunos em todo o livro (p. ex., 2:21, 12:14-17, 24:6, 29:5, 31:40, 42:10). Aqui, pela primeira vez desde aquela passagem inicial, todos os seis são usados em conjunto (cinco foram usados em 18:7-9). Além disso, a metáfora de velar, usada na narrativa de chamada inicial em uma visão simbólica para confirmar a Jeremias que a palavra de Deus estava assegurada para ele (1:11-13), é novamente retomada aqui (v. 28).
A combinação destas metáforas nesta leitura claramente assinala um clímax teológico no livro. Não é tanto que os temas de plantar e edificar são subitamente introduzidos na pregação de Jeremias, embora haja certamente a sugestão de que sua mensagem se deslocará agora para uma ênfase em edificar e plantar. É mais uma confissão teológica que na história de Israel, como os israelitas enfrentaram a hora mais escura que eles tinham experimentado desde a fuga como escravos do Egito, a palavra de Deus desta vez é sobre o futuro e a esperança.
Não há nenhuma alegria expressada na calamidade iminente de Israel. De fato, nas passagens posteriores Deus pede desculpas pelo Exílio (42:10). Há uma visão realista da história, aqui. Ainda, a mensagem de edificar e plantar vai muito além de qualquer futuro inerente a possibilidades históricas que alguém possa prever. É esta dimensão que é sublinhada pela referência ao Deus que "vela" pelo povo, tanto quanto Ele tinha velado pela Sua palavra dada a Jeremias.
A terceira metáfora é de fato uma referência a um provérbio (v. 29) que observa, de uma perspectiva diferente, que os pecados dos pais são visitados sobre os filhos (Êxo. 20:5, Deu. 5:9). Isto não é uma formulação legal, mas uma observação sobre a vida, como as conseqüências de certo comportamento, do pecado, se realizam em gerações sucessivas. A nossa moderna experiência com bebês dependentes de “crack” e comportamento abusivo, para usar apenas dois exemplos, mais do que confirma a verdade do provérbio na vida. Mas aquele modo de pensar é desafiado aqui, pelo menos no que se aplicava à situação do exílio.
É fácil imaginar o desespero que pode ter surgido devido à pregação de Jeremias ao coração. Ele tinha estado proclamando que a destruição da nação era devido aos pecados dos pais e à recusa do povo durante o período de várias gerações de se arrepender realmente e voltar para Deus. Ele tinha até concluído que o povo estava tão acostumado a pecar que eles não só não se modificariam, mas não podiam modificar-se (p. ex., 13:23).
Se acreditassem nele, e eles creriam, depois que a cidade foi destruída, então o desespero viria para mostrar que Jeremias estava certo na avaliação que fizera deles de que eles tinham pouca esperança de tornar-se o Povo de Deus. Mesmo se houvesse futuro, o que poderia impedir de acontecer a mesma coisa novamente? Se as conseqüências dos pecados dos pais, e dos seus próprios pecados, viesse sobre eles no futuro, que esperança eles poderiam ter de serem alguma vez fiéis a Deus naquele futuro? E que diferença faria de qualquer maneira se eles fossem assolados com o ciclo de conseqüências criadas pelos pais e avós?
Jeremias conduziu essa questão simplesmente rejeitando esse provérbio nesta situação (cf. Eze. 18:1-32). Os seus comentários não foram uma tentativa de definir o pecado legalmente ou sistematicamente. Eles são uma afirmação simples que o futuro, o futuro de Deus, será bastante diferente do passado e que a "maldição" das conseqüências do pecado seria quebrada. Sendo que a novidade poderia estar após o final do exílio, seria uma novidade na qual as pessoas seriam responsáveis pela sua própria resposta, não carregada pela preocupação com o legado do pecado a que elas tinham sido entregues. O futuro de fato seria bastante diferente do passado, porque realmente seria algo novo. E eles teriam uma chance genuína de dar uma resposta fiel ao novo futuro de Deus.
A segunda seção da nossa leitura é em resposta a esta dimensão da novidade. Novamente, alguém pode ouvir o povo perguntando: "De que forma isso será novo?" O texto não concede tantas dimensões para aquela pergunta como poderíamos gostar, e teremos de ser cuidadosos para não impor as nossas dúvidas ao texto. Ainda assim, é uma pergunta justa para se fazer.
Jeremias prometeu uma nova Aliança, que de algum modo seria diferente da Aliança que tinha estado em vigor desde o Sinai (vs. 31-32). Aqui temos de lembrar que o conceito de Aliança não era entendido no Velho Testamento em termos legais. Mesmo embora o contexto histórico e cultural do conceito da Aliança fosse mais semelhante ao dos tratados internacionais do antigo Oriente Médio, uma compreensão estritamente legal de tal relação é muito mais arraigada em conceitos que se originaram da lei romana [surgida séculos depois] do que a que está no Velho Testamento e no seu mundo. A Aliança foi um modo metafórico de descrever a relação entre Deus e o povo, quanto à interação mútua. Deus revelou-se ao povo ("Eu serei o seu Deus") e esperou que o povo respondesse àquela revelação com adoração e fidelidade ("vocês serão o Meu Povo").
A quebra da Aliança (v. 32), então, não foi a violação de uma lei que requeria uma penalidade legal, mas foi a perturbação de um relacionamento que precisava de cura e restauração. Aqui em Jeremias, como na maior parte do material no Velho Testamento sob o efeito da perspectiva pós-exilica dos Deuteronomistas, "lei" (na verdade Torah: "instrução") e "Aliança" são usados de modo intercambiável. Isso sugere que o relacionamento com Deus não foi definido em termos de Torah, mas que a Torah foi definida em termos de relacionamento com Deus.
A metáfora do casamento que é introduzida no meio deste provérbio pelo uso do termo ba’al, "marido" (v. 32), confirma que o quadro esboçado aqui é de um relacionamento entre Deus e o povo que estava horrivelmente torto. O povo foi infiel, não respondeu apropriadamente naquele relacionamento. É interessante que Jeremias, bem como Oséias, de onde algumas imagens desta leitura são emprestadas, usasse a metáfora do casamento quase do mesmo modo. Ambos descreveram Israel como uma esposa infiel que valorizava mais a vida da prostituição do que a seu marido (Osé. 1-3, Jer. 3). Isso causou uma mancha na história de Israel, devido ao envolvimento com as religiões de fertilidade dos Canaanitas. Assim, essa comparação com a esposa infiel tornou-se um modo especialmente apropriado de falar sobre a magnitude do pecado de Israel quanto ao relacionamento rompido.
Neste sentido, a velha Aliança acabou, a relação foi destruída. Não pode ser ressuscitada como se nada tivesse acontecido, certamente não pelas pessoas que a tinham destruído. Uma nova Aliança implicaria numa nova forma de relacionamento que se diferenciaria claramente da velha forma de relação. Se o problema foi uma falha na relação e não um problema de violação legal, então o remédio precisaria ser na direção da restauração do relacionamento em vez de consequência legal [aplicação de punição]. Eles não precisavam de outra lei ou de uma lei diferente; eles precisavam de uma mudança no coração que lhes permitiria responder apropriada e fielmente dentro do relacionamento para o qual Deus já os havia chamado, e às instruções que Ele já lhes havia dado para viverem no Mundo como o Seu Povo. A novidade tinha de vir na forma desta mudança do coração, não com mais leis ou melhores leis. [Aqui é assumida a certeza de que a Torah, ou seja, a Lei, dada inicialmente, era correta e sem defeito, assim como o Legislador é perfeito e não cometeu erros que precisassem ser abolidos na cruz (Tia. 4:11-12). Nem Israel precisa ser substituído por outra entidade chamada igreja (Rom. 11:11-24).*]
É quanto a esta relação entre Deus e o povo que a linguagem do coração fica significativa aqui. Tanto no hebraico como no inglês, certas palavras podem representar conceitos mais abrangentes, ou termos e idéias concretos podem representar outras mais abstratas. Como no inglês, é comum no hebraico que partes do corpo representem certas emoções ou sensações, ou aspectos da experiência humana. Deste modo, o nariz pode representar a raiva, o braço direito pode representar a força, e a garganta pode significar a ganância.
Contudo, o termo coração em hebraico tem uma variedade mais ampla de significados metafóricos do que no inglês. No idioma inglês, o coração normalmente refere-se a uma emoção, tal como amor ou compaixão ou até aflição (melancolia). Ele também pode ter aquele significado do hebraico em alguns casos (p. ex., Gên. 6:6). Contudo, ele também frequentemente carrega o significado de vontade ou intenção (p. ex., Gên. 6:5). Deste modo, por exemplo, "para amares ao Senhor teu Deus com todo o teu coração" (Deu. 6:5-9) significa que se deve tomar uma decisão consciente e teimosa de perseguir aquele curso de ação e pô-lo em prática na vida, e não somente ter um sentimento bom e caloroso sobre Deus.

É neste sentido da ação teimosa e intencional que a linguagem do coração está sendo usada nesta passagem. O problema do povo tinha consistido em que eles se tinham acostumado tanto a pecar que já haviam perdido a capacidade de escolher qualquer outro curso de ação. É a este problema que a atenção é dirigida aqui.
Dois aspectos são cruciais para entender este ponto. Em primeiro lugar, como a seção final deste capítulo esclarece, o futuro que é visionado aqui é o futuro histórico (vs. 38-40; observe que esta é a única outra seção a ser introduzida pela frase "eis aí vêm dias", além da nossa leitura neste capítulo). Isto é, não é uma esperança vaga sobre um futuro desconhecido e irreconhecível, mas é lançada na realidade concreta do retorno à terra e da reedificação da cidade de Jerusalém. Para isso acontecer, teria que haver uma ação significativa de Deus que ultrapassasse o fim do presente, algo análogo ao Êxodo, e que ainda fosse além. A repetição do Êxodo não seria suficiente, porque a resposta do povo àquela revelação de Deus não havia produzido o relacionamento ou resposta apropriados. Qualquer futuro que eles tivessem teria de estar fundamentado no Deus que novamente se revela na história, mas dentro do contexto do fim do exílio que tinha sido causado pela rejeição intencional deles a Deus (Jer. 32:36-41).
O segundo aspecto aqui é a forte ênfase no perdão do pecado. Novamente, isso não deve ser visto estritamente como um conceito forense do perdão pela transgressão legal, mas dentro do contexto da relação quebrada no pano de fundo do exílio. É uma vontade de perdoar ofensas por causa da relação, do mesmo modo como José se dispôs a perdoar a traição de seus irmãos por causa do seu amor por eles e por seu pai (Gên. 50:17; cf. Mat. 6:12-15 ou Luc. 15:21-24).
Mas há uma dimensão do perdão de Deus aqui que ultrapassa o que poderíamos esperar das mais modernas, práticas e sistemáticas perspectivas que possamos desenvolver. O perdão que Deus estende aqui não está condicionado a coisa alguma que o povo pudesse fazer. Nenhum arrependimento é requerido, nenhum sacrifício a ser oferecido, nenhuma oração a ser dita, nem mesmo é exigido um reconhecimento a Deus para ser dado em troca como uma condição do perdão. É simplesmente afirmado inequivocamente e incondicionalmente: "perdoarei a sua iniqüidade, e nunca mais me lembrarei dos seus pecados". É este perdão que passa a ser a base do novo conhecimento deles sobre Deus, e que é escrito no coração.
Estas duas dimensões vêm juntas para formar a dinâmica da Nova Aliança. O perdão de Deus seria realizado na realidade concreta de um povo restaurado. E nesse processo, o povo viria a "conhecer ao Senhor". A palavra "conhecer" em hebraico é significativa. Ela representa muito mais que o conhecimento intelectual ou efetivo, e pode incluir a maior intimidade da relação, o conhecimento de outra pessoa que vem para mútuo compromisso e experiência. É neste sentido que a palavra "conhecer" em hebraico pode ser usada até para designar relações sexuais íntimas entre o marido e a esposa (p. ex., Gên. 4:1).
Os israelitas vieram a "conhecer" Deus no Êxodo por causa do que Ele fez (Êxo. 6:6-7). Ainda, eles tinham chegado de alguma forma ao ponto onde eles mais conheciam a Deus (Jer. 4:22, Isa. 1:3). Agora eles enfrentavam o fim da nação que tinha surgido em consequência do Êxodo. E ainda, Deus não os abandonou como Seu povo. Ele tinha prometido que agiria outra vez na sua história para que eles pudessem novamente conhecer a Deus!
Aqui está o novo elemento desta Nova Aliança que ultrapassa a Aliança do Sinai, que se seguiu ao Êxodo. O Êxodo definiu a Deus como um Deus que ouve o clamor de escravos oprimidos, que está disposto a escolher e a criar para Si mesmo um povo e dar-lhe uma missão no Mundo. Mas o retorno do exílio iria até mesmo além. Isso revelaria um Deus que é capaz de ser compassivo e gracioso até com Seu próprio povo que o rejeitara. Ele é o Deus da segunda chance, que está disposto a comprometer-se com este povo apesar do pecado, da rebelião e do egocentrismo deles. Onde a graça e a compaixão pelos escravos oprimidos e a fidelidade às promessas feitas aos pais marcaram o Êxodo, o perdão, incondicional e não-qualificado, é o novo elemento aqui que vai além da relação estabelecida no Êxodo.
É esta revelação de Deus como Aquele que está disposto a dar ao povo uma segunda chance, após o fracasso abismal deles, que se tornaria a base da Nova Aliança. É esta dimensão de Deus que escreverá a lei nos seus corações e os chamará a responder. Aqui há expectativa de que tal clemência e tal graça que oferecem uma segunda chance, mesmo quando não é merecida, resultarão em uma vontade de serem fiéis a Deus. A meta consiste em que o povo estaria disposto e estaria ansioso por seguir a Torah, porque eles terão decidido de coração responder a este Deus de graça e perdão. [Responder, aqui, no sentido de obedecer.]
Naturalmente, há muito mais para ser dito sobre a natureza da sua resposta. Esta não é uma perspectiva antinomista que substitui a necessidade de observar a Torah por um perdão não-qualificado que não está relacionado com as ações. Ainda existem as consequências do pecado. E eles ainda teriam de responder em uma fidelidade que levasse a Torah a sério como a vontade de Deus para a humanidade. Não há nenhum abandono das instruções de Deus aqui, tanto quanto não houve nenhuma tentativa de Jesus em fazer assim (Mat. 5:17) nem por Paulo (Rom. 8:4). O assunto aqui é com o motivo e a intenção do coração que lhes permitiria ser fiéis a Deus pela obediência à Torah.
Esta leitura proclama que Deus agiria na história além do exílio de tal forma que o povo viria novamente a conhecer que Deus é Deus, e no conhecimento seriam capazes mais uma vez de responder a Ele em fidelidade. Aquela ação seria a realidade concreta do regresso à terra e da reedificação da cidade. Aqui está o coração da Nova Aliança, fundada no evento histórico, que ainda se abre na relação com Deus. A Nova Aliança depois do exílio compartilhou este aspecto com a velha Aliança do Sinai que foi quebrada. E ela o compartilharia com o novo evento histórico, ainda posterior, da Encarnação.
Teologicamente, isto é um exemplo do conceito da graça preveniente [graça preventiva] pela qual Deus garante à humanidade uma graça que precede qualquer resposta que eles poderiam dar-Lhe, e de fato os habilita para aquela resposta já que eles perderam a capacidade de responder. A um nível diferente teologicamente, esta leitura estabelece que o perdão de Deus, a vontade de Deus de restaurar uma relação quebrada, não é algo que deve ser buscado ou ganho. Deus já o garante como uma expressão incondicional de quem Ele é como Deus. É incondicional no sentido de que não há nenhum pré-requisito para sua concessão. Contudo, aquele perdão incondicional é só a base da resposta de fidelidade à Torah que se realizará em cada aspecto da vida humana (ver Torah como Santidade: "Lei" como Resposta à Graça Divina). Mas ele começa com Deus, no mesmo ponto da total incapacidade humana. É o que faz desta leitura uma expressão tão poderosa de esperança.

Caminhos da Pregação

É tentador aqui cair em um modelo interpretativo do cumprimento da promessa na pregação e simplesmente saltar para conexões imediatas desta passagem com textos do Novo Testamento que falam de uma Nova Aliança ou que até especificamente usam esta passagem como uma promessa da vinda de Jesus (por exemplo, Heb. 8:6-13). Como observado antes, isto não deve sugerir que aquelas conexões sejam inválidas ou que não podemos seguir a pista da teologia de Jeremias no Novo Testamento. Mas se vamos pregar sermões de Jeremias em vez de, por exemplo, Hebreus, e só usar Jeremias como um prelúdio, temos de ser cuidadosos para não passarmos demasiado rapidamente desta leitura para outra.
Este texto é basicamente sobre Deus e Sua vontade de trabalhar com a humanidade em face da recalcitrância, e até mesmo da pecaminosa rejeição a Ele como Deus. Desta perspectiva, vários Caminhos de Pregação podem abrir-se tendo este tema como centro.
Vemos aqui um retrato de Deus que emerge em maior profundidade e detalhe do que antes no Velho Testamento, um Deus que está desejoso de perdoar quando não há nenhuma outra base para o perdão do que o Seu amor e o Seu próprio desejo de restaurar uma relação quebrada. Muitas vezes, através das tradições bíblicas até este tempo, Deus tinha respondido ao pecado com a Graça. Começando no Jardim do Éden, Deus tinha demonstrado uma vontade de fazer menos do que a sua própria palavra Lhe tinha permitido fazer [quanto a punir os rebeldes]. A escolha da Graça e perdão em vez da punição imediata, se refletiu na pista que o pecado tinha deixado nas histórias bíblicas desde Caim e Abel, do Dilúvio a Abraão, de Moisés a Davi, ao relato do Cronista sobre a conversão de Manassés. As ações de Deus na história tinham sido marcadas por uma vontade de perdoar e mover-se para além do pecado.
Ainda, este caso foi diferente. Foi o próprio povo escolhido de Deus, que Ele tinha criado no mundo para ser Seu povo, que Ele tinha chamado a viver uma vida que refletisse quem Ele era como Deus deles, e eles tinham falhado. Não uma vez, mas através de séculos. Não havia nenhum precedente para ser aplicado nesta ocasião. Então, não havia nenhuma garantia de que Deus ainda seria gracioso e perdoador. Com o relacionamento entre Deus e Seu povo quebrado tão pessimamente, não havia nenhuma razão para acreditar que haveria algo que pudesse restaurá-lo.
E ainda, a natureza de Deus como um Deus que está disposto a não medir esforços para restaurar aquele relacionamento é claramente proclamada aqui. O perdão de Deus é dado simplesmente da perspectiva de começar [do zero] novamente. Não há nenhuma punição que seja suficiente, nenhuma penitência que seja apropriada, nenhum esforço que possa realizar o que Deus ofereceu gratuitamente a este povo. Ainda haverá exílio. As consequências do pecado virão. Mas há um perdão que espera no meio do exílio, que não vem por causa do exílio. Este perdão vem simplesmente porque Deus decidiu oferecê-lo, sem pré-requisitos e sem condição prévia. A escolha de Deus para estes pecadores não é nada mais do que simplesmente dizer: "Eu perdoarei".
E aquele perdão cria novidade nas vidas das pessoas, até haver uma transformação de seus corações. É Jeremias quem tinha proclamado antes quão radical esta novidade pode ser. Por anos ele tinha descrito os pecados do povo na mais vil, às vezes até na linguagem mais vulgar imaginável, comparando-os com uma prostituta que oferece o seu comércio nas ruas. E depois, Jeremias pode mudar e falar do Israel restaurado por Deus como uma virgem (31:4, 21). Esse é o tipo de novidade que Deus traz!
Isto não significa que Deus aprova o pecado, ou que o pecado não é um assunto sério. O pecado realmente traz o exílio. Mas o exílio não é o fim. O pecado e o fracasso não descarrilam os propósitos de Deus de manter um relacionamento com Seu povo. O pecado é destrutivo, mas não está além da capacidade de Deus! Estas pessoas não foram trancadas num futuro fechado por causa do pecado. O pecado não tem a palavra final, porque Deus é Deus!
Há necessidade de cuidarmos, aqui, para não aplicarmos este texto demasiado facilmente ao nosso modo individualista moderno de pensar e supormos que só se aplica diretamente a nós em nível pessoal. Seria fazer mau uso do texto. Mas há certamente algo que aprendemos sobre Deus aqui que sugere, só pela analogia, que Ele é o tipo de Deus que pode e trabalhará de forma semelhante nas vidas das pessoas hoje [Heb. 7:25].
Aprendemos aqui que Deus dá o primeiro passo em direção à reconciliação do Seu povo com Ele. Quando eles não podem fazer o que é necessário para reconstruir um relacionamento despedaçado, Deus o faz para eles. Deus fornece os meios pelos quais as pessoas podem responder-Lhe com a fidelidade. Talvez, então, Ele estivesse falando da impossibilidade de guardar a Lei de Deus [sem Sua ajuda], que é o que Paulo tinha em mente quando escreveu (Rom. 8:3-4):

“Porquanto o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne; para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito.” - Almeida Revista e Corrigida, SBB, 1969.

Isto é outra expressão das distâncias que Deus percorreria para reconciliar consigo mesmo uma humanidade teimosa, que não pode fazer nada por si própria para merecer o amor de Deus. E a solução de Deus para realizar a reconciliação na história humana é ser o seu Deus, na expectativa de que a resposta das pessoas também seja construir suas próprias histórias através de corações mudados e de vidas mudadas, permitindo que o perdão as transforme de dentro para fora.
Daqui, não é tão difícil ver que os fundamentos foram colocados para entendermos a expressão posterior da mesma natureza e do caráter de Deus na Encarnação, com as mesmas expectativas. Não temos que abolir o Velho Testamento ou a tradição judaica que se desenvolveu depois do exílio para fazer essa conexão. Só temos de aceitar como cristãos que em Jesus testemunhamos de novo o mesmo Deus trabalhando novamente na história, revelando-se como um Deus que não está disposto a aceitar que alguém pereça, mas que todas as pessoas devem ser reconciliadas com Ele. E já sabemos quão longe Ele foi para assegurar-se de que entendemos que o perdão está disponível para nós.

- Dennis Bratcher, Copyright © 2009, CRI/Voice, Institute
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Bratcher is a PhD from Union Theological Seminary and an ordained Church of the Nazarene pastor.

*Obs.: As explicações entre colchetes foram supridas pelo tradutor.
Traduzido por: César B. Rien. Os textos bíblicos em português foram extraídos da ARA - com referências e algumas variantes, à exceção de Rom. 8:3-4, acima.

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