terça-feira, 18 de maio de 2010

O MITO DE PAULO SER LIVRE-DA-LEI PERMANECE ENTRE CRISTÃOS E JUDEUS

(The Myth of the 'Law-Free' Paul Standing Between Christians and Jews)
[Excerto]

Mark D. Nanos
Rockhurst University
Volume 4 (2009)

A Questão de Paulo ‘Tornar-se Como’ ou ‘Ser Como’

Enquanto o consenso esmagador aceita que Paulo era contra guardar as normas dietéticas judaicas em Antioquia, alguns intérpretes reconhecem que a lógica do argumento de Paulo em 1ª Coríntios transmite tanto que ele desaprovava o comer da comida que se sabia ser idolátrica, quanto o fato de que ele próprio não comia comida idolátrica, por exemplo, quando evangelizando entre os idólatras.48 A minha própria pesquisa fortalece este segundo caso.49 Os "débeis" ou "prejudicados", em 1ª Coríntios 8−10, provavelmente não são seguidores de Cristo, mas politeístas (pagãos), aqueles que ainda praticam ritos idolátricos como uma questão de princípio. "Eles" são "alguns" que necessitam deste conhecimento do Deus Único, que até agora estavam acostumados a comer comida idolátrica sem sentir que não é correto fazer assim (v. 7), diferentemente do público de Paulo, que é o "nós" que conhecemos o Deus Único e que "tem o conhecimento" que essas estátuas não representam deuses reais (8:1-6). E por que fariam diferente, se eles não são seguidores de Cristo, mas idólatras?
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48 Peter J. Tomson, Paul and the Jewish Law: Halakha in the Letters of the Apostle to the Gentiles, CRINT (Assen and Minneapolis: Van Gorcum and Fortress Press, 1990); Peter David Gooch, Dangerous Food: I Corinthians 8-10 in its Context, SCJ 5 (Waterloo, Ontario: Wilfrid Laurier University Press, 1993); Alex T. Cheung, Idol Food in Corinth: Jewish Background and Pauline Legacy, JSNT Sup 176 (Sheffield: Sheffield Academic Press, 1999); John Fotopoulos, Food Offered to Idols in Roman Corinth: A Social-rhetorical Reconsideration of 1 Corinthians 8:1-11:1, WUNT 2.151 (Tübingen: Mohr Siebeck, 2003).
49 "Polytheist Identity"; "Paul's Relationship to Torah in Light of His Strategy 'to Become Everything to Everyone' (1 Corinthians 9:19-23)," Interdisciplinary Academic Seminar: New Perspectives on Paul and the Jews, Katholieke Universiteit, Leuven, Belgium, September 14-15, 2009, estabelece este caso de modo detalhado.

A questão levantada pelos coríntios seguidores de Cristo é se eles podem comer a comida que era ou tinha sido sacrificada a ídolos. Eles raciocinam que desde que eles não mais acreditam que esses ídolos representam deuses e senhores, a comida oferecida a eles não tem nenhuma santidade. Comer comida relacionada aos ídolos com indiferença teria a vantagem de testemunhar as suas convicções do Evangelho e, ao mesmo tempo, não causaria ofensa aos seus vizinhos politeístas. A retirada de todos os contextos onde era servida e de onde era comprada no mercado, em contraste, seria parecida com um suicídio social, como se residissem à parte do mundo. Como eles deveriam viver quando praticamente cada compromisso social e a maior parte da comida disponível para refeições implicavam alguma associação com a idolatria da sua família, vizinhos e companheiros de trabalho politeístas, e com a vida cívica em geral?

Contudo, Paulo vê as coisas de um ponto de vista judaico fundamentado na Torá, e evita a lógica do apelo deles para comer a comida idolátrica. O seu raciocínio provavelmente os surpreendeu, já que os israelitas sustentavam há muito tempo que os ídolos eram meramente estátuas, que não deviam ser construídas. Aqueles que adoravam os deuses através dos "ídolos" eram considerados como sendo mal-guiados, no mínimo. Mas ele não segue a idéia de que se pode participar com indiferença em ritos idolátricos ou até comer a comida que tinha sido usada em qualquer desses ritos, inclusive quando mais tarde estava disponível no mercado. Melhor, ela deve ser evitada como se estivesse infectada com poderes que procuram rivalizar com Deus e prejudicar Seu povo.50 Portanto, Paulo sustenta que antes que testemunhar aos seus vizinhos politeístas, comer dessa comida idolátrica pode servir de escândalo para eles, levando-os a continuar na idolatria sob a impressão de que a fé em Cristo sanciona tal comportamento. Eles permanecerão ignorantes sobre a proposição do Deus Único, que está no coração da confissão deste subgrupo judaico, a comunidade da fé em Cristo.
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50 Paradoxalmente, a Escritura não banaliza os ídolos como deuses sem sentido e proscritos como demoníacos e perigosos para os que estão em Aliança com o Deus Único (e.g., compare Deu. 32:21 com vv. 16-17; Isa. 8:19 e 19:3 com os capítulos 40 e 44; cf. Wis 13—16; ver também Sal. 106:36-39; 1 Enoque 19; Jubileus 11.4-6); outros deuses, e senhores são implicitamente reconhecidos a existir, apesar de serem menores do que o Deus de Israel, e eles não devem ser honrados pelos israelitas (Êxo. 15:11; 20:2-6; 22:28; Deu. 4:19; 29:26; 32:8-9; Sal. 82:1; Miquéias 4:5; Tiago 2:19); imagens de outros deuses devem ser destruídas na terra de Israel (Êxo. 23:24; Deu. 7:5). Ver Tomson, Paul, 151-77, 208-20; Cheung, Idol Food, 39-81, 152-64, 300-1.

Mas, por quê Paulo não dá uma resposta direta e diz que a Torá ensina que o "conhecimento" sobre Cristo é não comer alimentos idólatras? Porque o seu público-alvo não é composto por judeus, assim, eles não estão sob a Torá, nos mesmos termos que os israelitas. O entendimento de Paulo sobre a lógica da verdade é que Deus é Um e é o Deus Único de Israel, e que o Evangelho o constrange a tal ponto. Assim, ele inicia 1ª Coríntios 8 com os primeiros princípios. Ele concorda com os seguidores de Cristo que "sabem" que não existe tal coisa como os deuses e senhores que essas estátuas representam (v. 4). No entanto, ele acrescenta, como parte de seu apelo lógico para o Shemá - a proclamação para Israel, e para os gentios crentes em Cristo também - que há coisas como outros deuses e senhores, a quem ele vai identificar como demônios (v. 5; 10:20-21). Então, ele escreve no equilíbrio do capítulo 8, que, porque alguns não têm esse conhecimento, sendo "fracos/prejudicados", o "conhecedor" deve abster-se de comportar-se como se todas as coisas relacionadas aos ídolos fossem consideradas profanas. Fazer isso irá prejudicar os "fracos" politeístas, pois pensam que essas coisas são sagradas para os deuses e senhores aos quais são dedicados. Esse comportamento não enviaria a mensagem para esses "prejudicados", ainda não-crentes em Cristo "irmãos pelos quais Cristo morreu" (8:11-12, cf. Rom. 5:6-10), que eles, juntamente com os seguidores de Cristo e todos os israelitas, se abstenham de tal comportamento e voltem para o Deus Único e sem igual.51
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51 Cf. Nanos, "Polytheist Identity," para uma discussão aprofundada da lógica para a compreensão dos “irmãos” asthenes ( "fracos/prejudicados") como os idólatras não-crentes em Cristo, e da preocupação da carta em ganhá-los para Cristo. Note que os pais da Igreja continuaram agindo conforme esse entendimento da construção de estranhos como parentes. Inácio (final do 1º, início do 2º séc.) convida seus destinatários a orar por pessoas de fora da igreja, e de se comportarem como "irmãos/irmãs [adelphoi]" para eles, tal como expresso através da imitação como Cristo viveu humildemente com o seu próximo, incluindo a escolha de ser injustiçado, apesar do erro deles (Eph. 10; cf. Mart. Pol. 1.2). E embora Crisóstomo (final do 4º séc.) entendesse o prejudicado em 1ª Cor. 8—10 sendo os seguidores de Cristo, ele sustentava que os cristãos da base socioeconômica no seu próprio público deveriam considerar como irmão o colega de classe social mais do que o da elite ou rico (Cor. 117 [Homily XX]). Para exemplos não-cristãos da preocupação com os de fora do próprio grupo filosófico, ver Epictetus, Diatr. 1.9.4-6; 1.13.4, sobre os Cínicos em particular, Diatr. 3. 22.81-82; Marcus Aurelius, 2.1; 7.22; 9.22-23.

Após uma digressão no capítulo 9, para explicar o próprio auto-sacrifício no modo de viver, inclusive como ele adapta sua retórica a cada grupo que procura ganhar, Paulo move o argumento contra o comer alimentos oferecidos aos ídolos até a etapa seguinte no capítulo 10. Evitando até certo ponto o apelo direto às injunções da Torá, ele invoca exemplos da Torá para deixar claro que aquele que come à mesa do Senhor não pode também comer à mesa de outros deuses, assim chamados demônios. Em outras palavras, ele admite que há poderes associados aos ídolos, minando a concessão teórica com a qual ele iniciou este argumento que, aparentemente, compartilhava a premissa dos gentios crentes em Cristo de que não havia nenhuma coisa tal como outros deuses e senhores. Assim, apesar do fato de Deus ter feito todas as coisas para serem comidas com a oração de santificação, nem todas as coisas podem ser comidas. A pureza não é inerente à comida, mas imputada pelo mandamento de Deus. Qualquer comida que se sabe ser comida idolátrica, se disponível no mercado, ou oferecida na casa de um anfitrião, não pode ser consumida. Os crentes em Cristo, como os israelitas bíblicos, devem abandonar a idolatria, tanto por sua própria causa como por causa dos seus vizinhos politeístas, seus irmãos e irmãs na Criação, aos quais Deus em Cristo procura remir através deles.

Paulo não permitiu o comer alimentos sabidamente idolátricos, e não há nenhuma indicação de que ele próprio alguma vez os comeu. As provas mostram o contrário. Além disso, o ensino da igreja primitiva por séculos consistiu em que os cristãos não deviam consumir a comida idolátrica, em parte, baseado na sua leitura deste texto.52 O argumento de Paulo, inclusive aquele contido em 1ª Cor. 9:19-22, confirma que o seu público sabia que ele era não só alguém que não comeria tal comida, mas também alguém que esperava que eles agissem da mesma forma. Assim, embora eles soubessem que ele era praticante da Torá, quando havia estado entre eles em Corinto, a sua questão é um protesto pelo custo a sua vida cívica causado por Paulo negar esta comida para eles como gentios. Eles sabiam que pelos termos definidos na própria proclamação de Paulo da verdade do Evangelho, ele entendia que eles permaneciam não-judeus e não estavam sujeitos à Torá.
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52 Acts 15:20, 29; 21:25; Rev 2:14, 19-20; Didache 6.3; Ignatius, Magn. 8—10; Pliny, Letters 10.96; Aristides, Apology 15.4; 12; Justin, Dial. 34.8; 35.1-2; Tertullian, Apol. 9.13-14; Cor. 10.4-7; 11.3; Spect. 13.2-4; Jejun. 2.4; 15.5; Mon. 5.3; Clement, Strom. 4.15.97.3; Tomson, Paul, 177-86; Gooch, Dangerous Food, 122-27, 131-33; Cheung, Idol Food, 165-295; David Moshe Freidenreich, "Foreign Food: A Comparatively-enriched Analysis of Jewish, Christian, and Islamic Law" (PhD Thesis: Columbia University, 2006), 123-41. Barnabas 10.9, pode sugerir um primeiro grupo que comia qualquer coisa, mas não é específico sobre a comida idolátrica; e ver Tertuliano, Apol. 42.1-5.

Em Gál. 9:19-22, Paulo declara que para ganhar os judeus ele "se tornou como um judeu," para ganhar os "debaixo de nomos" (lei/Aliança/Torá?) ele "tornou-se como alguém debaixo de nomos," mas também para ganhar o sem-lei ele "se tornou como um sem-lei" (anomos), e para ganhar o "fraco" ele "tornou-se fraco", que são entendidos como inseguros na sua liberdade em Cristo, e então evitam comer a comida idolátrica.53 Esta afirmação tem sido universalmente compreeendida como significando que Paulo considera a observância da Torá, inclusive o valor da própria identidade judaica, como sendo só uma questão de conveniência evangélica. Aquela interpretação, que com objetivos analíticos pode ser chamada "a adaptabilidade do estilo de vida," depende da compreensão da motivação para "tornei-me como" (egenomen hos) os membros de cada um dos vários grupos, para significar a motivação para "eu imitar a conduta" de cada um deles.
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53 Não está claro como a referência a esses "sob a lei" difere de "judeus", por exemplo. Talvez ele se refira a prosélitos ou aos que representam as normas mais rigorosas, como fariseus, alternativamente, pode referir-se a estar sob as leis ou convenções Romanas ou outras. Do mesmo modo, não está claro se anomos refere-se a judeus sem-lei (talvez não-praticantes), bem como para os não-judeus, ou somente para não-judeus, como se ele tivesse escrito xoris nomos ( "sem-lei"). Veja o meu "Paul's Relationship to Torah" e "Paul and Judaism."

Na visão de consenso, Paulo não compartilha com os vários grupos as verdades da proposição, mas ele simplesmente copia certos aspectos do seu comportamento, presumivelmente, para ganhar uma audiência entre eles fazendo-os (erradamente) supor que ele poderia compartilhar de fato as suas convicções. Isto aplica-se a tal conduta como comer conforme a Torá, quando com aqueles que comem haláquicamente, e sem consideração à Torá, quando com aqueles que não comem segundo as normas dietéticas judaicas. Em outras palavras, Paulo não se "torna" de fato nem "torna-se como" cada grupo por ele referido, mas, em vez disso, simplesmente "finge na superfície viver como" eles quando está entre cada um deles. Então, ele abandona aquela conduta e vive como os outros quando entre eles. Mas há outro modo de entender o argumento de Paulo, aqui, que evita implicar que ele é indiferente à Torá como também que ele comprometia sua moralidade atribuindo-lhe uma estratégia do tipo "troca-isca" [ou vira-casaca*].

Ao invés de sugerir que ele se relaciona com cada pessoa ou grupo imitando seu estilo de vida, proponho que, ao invés disso, Paulo está se referindo a sua estratégia retórica para persuadi-los. Seu "tornar-se como" não significa "comportar-se como," mas sim "argumentando como", ou "raciocinando como". Ele emprega uma estratégia de "adaptabilidade retórica", amplamente acolhida na tradição filosófica de seu tempo, na qual um orador começa com as premissas daqueles a quem procura persuadir, tendo ou não, em última análise, a intenção de destruir essas premissas.54 Era o método de Sócrates, e ainda é empregada como um dos melhores métodos para ensinar aos alunos. Rotineiramente, Paulo começa com verdades proposicionais de seu público, seja para compartilhá-los, como faz com os judeus e aqueles que são cumpridores da Torá, ou não, como nos casos daqueles que ele chama sem-lei, ou os fracos que se dedicam à idolatria como uma questão de convicção. Ele não se comporta como eles, mas argumenta de forma a adaptar-se ao pensamento proposicional de cada grupo, que ele procura persuadir ao Evangelho.
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54 W. B. Stanford, The Ulysses Theme: A Study in the Adaptability of a Traditional Hero (Dallas: Spring Publications, 1992), 90-101.

Assim, também aqui, ele se aproxima do conhecimento em Corinto sobre o alimento idólatra, parecendo confirmar as premissas com as quais ele discorda, a fim de levá-los a conclusões diferentes daquelas que eles tinham planejado.

Lucas descreve Paulo pregando aos filósofos, em Atenas, justamente desta forma (Atos 17:16-34). Paulo começa a partir da premissa deles de que existe um "Deus desconhecido", a quem dedicaram uma estátua. Paulo não começa declarando que não existe tal coisa como deuses politeístas, mas baseia-se na (errada) convicção deles de que este "ídolo" simboliza um deus. Então, ele declara a identidade daquele Deus como sendo realmente o Deus de Israel. Em seguida, ele passa a informá-los que este Deus não aprova a construção de estátuas de Si mesmo, ou de qualquer outro suposto deus ou senhor. Paulo não faz essa crítica óbvia no início de seu discurso, mas ela torna-se transparente à medida que ele se move para sua conclusão de que o Deus de Israel é o único Deus Criador de toda a humanidade. Desta forma, Paulo "tornou-se como" um idólatra para ganhar os idólatras. Ele não se conduziu idolatricamente nem imitou a conduta idólatra, pelo contrário, ele permanece como um judeu praticante da Torá enquanto discute a partir das premissas dos politeístas aos quais procura persuadir.

Minha leitura não só evita a caracterização negativa de Paulo e seus métodos como intencionalmente enganosos, que compromete de forma questionável sua retidão, verdade e justiça, mas também desafia a noção de longa data de que 1ª Coríntios 8-10 mostra claramente que Paulo é por definição livre-da-Torá. Em vez disso, demonstro que ele é cumpridor da Torá e que ele constrói seus argumentos assumindo que seu público está ciente deste fato. Intérpretes subsequentes, supondo que seus contemporâneos compartilhavam o entendimento posterior que Paulo fosse livre-da-Torá, não só terminaram por descaracterizá-lo, mas também perderam a essência de seu ensino.

[Texto extraído das páginas 25 a 30 do estudo mencionado no título inicial. *A observação entre colchetes foi acrescentada pelo tradutor.]

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