quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A NOVA ALIANÇA É A MESMA DO SINAI RENOVADA

O artigo abaixo é de autoria do Dr. Paulo Severino da Silva Filho, Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Coordenador do Departamento de Teologia Exegética e do Curso de Bacharel em Teologia do Seminário Teológico Presbiteriano Reverendo Ashbel Simonton.

UMA NOVA ALIANÇA
Meditação sobre Jeremias 31.31-34


Rev. Paulo Severino da Silva Filho


INTRODUÇÃO

Celebramos nesta manhã a Ceia do Senhor. Nas palavras de sua instituição, há uma expressão que quero destacar para introduzir nossa reflexão desta hora: “nova aliança”. Segundo o registro de Lucas, Jesus diz sobre o cálice: “Este é o cálice da nova aliança no meu sangue, derramado em favor de vós” (Luc. 22.20). Com algumas variações, que não cabe discutir aqui e agora, a expressão aparece em Paulo (1ª Cor. 11.25), e em alguns testemunhos de Mateus e de Marcos também.

A expressão “nova aliança” vem do texto do livro de Jeremias 31.31-34, único lugar em que ela aparece no AT.

A questão que se coloca diante de nós é a seguinte: Em que sentido se fala de “nova aliança”?

Não se trata de nova no sentido de outra, diferente, como uma leitura apressada do texto pode dar a entender. Não há modificação da aliança firmada por Deus com os pais (entendendo-se aqui que o texto se refere à aliança do Sinai, pela mediação de Moisés); ela nem sequer é chamada de antiga. Trata-se da mesma aliança, única, eterna, fruto da iniciativa da Graça de Deus. Não se altera sua base, que é o amor salvador e perdoador de Deus. Nem se altera seu conteúdo: trata-se das mesmas leis, a mesma Torá, expressão da vontade de Deus, que não muda. [Sal. 89:34; Mal. 3:6]

Também não se trata simplesmente de uma transposição da aliança para o âmbito da interioridade. Os termos “entranhas” (que a ARA traduz como “mentes”) e “coração” poderiam nos levar a pensar assim, em algo interior, interno, íntimo, até intimista. Engano: a Aliança de Deus com Seu povo nunca foi uma realidade meramente exterior; ela sempre envolveu o interior do ser humano, sem se limitar a isso. Ela envolve a vida toda das pessoas, tanto atitudes internas quanto ações externas. Ações externas sem atitudes internas correspondentes não fazem o menor sentido na religião bíblica; nunca fizeram. (E ousaria até dizer: não fazem sentido em religião alguma, pois não há como conceber uma religião, qualquer que ela seja, sendo praticada sem sinceridade e seriedade). A espiritualidade e a religião, na Bíblia, dizem respeito sempre à totalidade da existência do ser humano, em todas as suas relações, com Deus e com o próximo.

Então, se não se trata de nova aliança no sentido de outra, diferente daquela do Sinai, e se não se trata de uma interiorização da Aliança, em que sentido se fala de nova aliança? É nova no sentido de renovada. Trata-se de renovação, de novo começo, de nova oportunidade. Um novo começo e uma nova oportunidade que se dão a partir da transformação das pessoas e de sua compreensão da relação com Deus.

Não é Deus quem muda, não é a Aliança que muda, são as pessoas que mudam. No tempo anunciado por Jeremias, nova será a maneira de ver e de viver a Aliança, de compreender e de responder à Aliança com Deus. Como será vista essa Aliança Renovada?

I) RELAÇÃO INDIVIDUAL COM DEUS

A Aliança era até então vista como realidade coletiva, comunitária – com o povo em seu conjunto, ou com parte dele, ou com algum elemento dele que o representasse. Mas agora fala-se que Deus passará a lidar com individualidades. O texto fala de Deus inscrever Suas Leis nas entranhas (sede dos afetos) e nos corações (sede da racionalidade) das pessoas. São os órgãos internos, que caracterizam o indivíduo; e o caracterizam como um todo, por suas emoções e sua inteligência, seus sentimentos e sua razão. O texto fala também de conhecer a Deus; e só indivíduos podem conhecer alguém ou alguma coisa. Fala ainda de perdão de pecados; e, de igual modo, só indivíduos podem pecar e ser perdoados (ou castigados).

Veja os vv. 29-30. Eles falam de responsabilidade individual diante de Deus, a partir da citação de um provérbio (que deve ter sido muito usado em Israel) e sua correção. A idéia aparece mais desenvolvida em Eze. 18 (que começa citando o mesmo provérbio). Ela se constituirá num traço característico do judaísmo e também do cristianismo. Ela nos ensina que, mais do que Deus de um povo, Deus é Deus de pessoas, de indivíduos. É uma verdade que precisa muito ser destacada numa época de tanta atração ainda exercida por pensamentos e práticas totalitários e coletivistas, por mais incrível que pareça.

A nova aliança é relação individual com Deus. Isto nada tem a ver com o individualismo dos tempos que vivemos, tão equivocado e tão danoso ao próprio indivíduo e aos outros; um mal tão terrível quanto o coletivismo. Isto nos mostra quanta dignidade cada um de nós possui; e quanta responsabilidade também. Por isso a Bíblia diz que Deus julgará a cada um de acordo com suas obras. Não que a Salvação seja por obras (é por Graça); mas as obras são o critério do Juízo, porque revelam a opção fundamen-tal de cada um, as intenções do coração e das entranhas, em outras palavras, a fé de cada pessoa, que será individualmente julgada pelo Deus que estabelece Sua Aliança como relação individual com Ele.

II) RELAÇÃO IMEDIATA COM DEUS

A Aliança era mediada por instituições: o sacerdócio, o profetismo, a própria monarquia. Agora, fala-se de um acesso direto, de uma relação imediata com Deus, expressa em termos de conhecimento, e um conhecimento que será dado a todos, pequenos e grandes (v. 34). Conhecimento é palavra muito importante na Bíblia, e com sentido bastante diferente daquele que tem para nós ocidentais e modernos. Mais do que se referir a algo intelectual, teórico, conhecimento tem a ver com experiência pessoal com Deus; de comunhão de vida com Deus; de um acesso direto a Deus, de uma relação pessoal e imediata com Ele, que será possibilitada a todos os que estiverem em Aliança com Deus. Independentemente da mediação de qualquer figura ou instituição.

O cristianismo protestante, muito acertadamente, falará do sacerdócio universal dos crentes – não numa mera inovação sua, mas numa interpretação correta da própria Bíblia, que fala do propósito de Deus de constituir para Si um povo de sacerdotes (cf. Êxo. 19.6; Isa. 61.6). No tempo da nova aliança, cada um pode comparecer diante do Trono da Graça de Deus, para orar por si mesmo ou por outros, pela mediação de Jesus Cristo. Isto não dispensa nem desvaloriza a dimensão comunitária da fé e da espiritualidade, mas ressalta o fato de que é com pessoas individuais que Deus lida. É a pessoas individuais que Deus ama. É a pessoas individuais que Deus quer salvar. É com elas que Deus quer entrar e efetivamente entra em Aliança. Numa relação individual e imediata. E que seja também inquebrável.

III) RELAÇÃO INQUEBRÁVEL COM DEUS

A Aliança, na concepção do texto de Jeremias, podia ser quebrada, anulada pelo povo. (Embora jamais por Deus, sempre fiel a Sua Aliança.) Agora, não. A Aliança será nova porque será inquebrável; não poderá ser desfeita.

Pois envolverá transformação de vidas: novo coração e novo espírito, dados pelo próprio Deus (cf. Jer. 24.7; 32.39; Eze. 11.19-20; 36.26-28). Isto significa que Deus mesmo criará as condições para que a Sua Aliança jamais volte a ser quebrada. É o que o Deuteronômio chama de circuncisão do coração (Deu. 30.6).

A relação com Deus será inquebrável também porque será vivida de dentro para fora: Sua Lei não estará mais inscrita em pedra, ou couro, ou papel, mas em corações e vísceras; não mais será aprendida por ouvir dizer, mas conhecida interiormente, a partir do centro da vida, do coração e das entranhas, das sedes do entendimento e da afetividade. [Considerando-se a afirmação prévia de que as Leis e a Torá são as mesmas.*]

Lembremos Jer. 32.40, em que um interessante elemento novo é acrescentado, no mesmo contexto de uma nova aliança, aqui chamada eterna: o temor de Deus. Este elemento, que os livros sapienciais bíblicos chamam de o princípio da sabedoria, sintetiza a atitude correta diante de Deus, sem a qual é impossível qualquer relacionamento com Ele. A Aliança Renovada por Deus será eterna, inquebrável, também por isso, porque de coração cada participante dela terá por Deus o devido respeito e reverência.

CONCLUSÃO

Os dias anunciados por Jeremias, dias de chegada de uma nova aliança, são dias como nunca houve. A propósito, a expressão “eis aí vêm dias” também é única em sua forma na Bíblia.

Tais dias são os últimos dias. Dias muito esperados, da intervenção final e definitiva de Deus na história humana.

Tais dias começaram com Jesus Cristo, cujo natal comemoramos há pouco, e em cuja morte na cruz vimos a expressão máxima do Amor de Deus por nós e a firmação dessa nova aliança anunciada por Jeremias. (Recordemos mais uma vez as palavras da instituição da eucaristia segundo Lucas: “Este é o cálice da nova aliança no meu sangue, derramado em favor de vós”.) Por Jesus, entramos numa nova relação com Deus, individual, imediata, inquebrável.

O que era objeto de anúncio, de expectativa, de promessa, agora é realidade.

É tempo de celebrar a nova aliança, em torno da mesa do Senhor, e de vivê-la todos os dias e em todas as circunstâncias. Que Deus nos abençoe e ajude a fazer assim.


Rev. Dr. Paulo Severino
*O autor é pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, professor do Seminário Simonton, onde exerce as funções de Coordenador do Departamento de Teologia Exegética e do Curso de Bacharel em Teologia, e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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